quinta-feira, 18 de maio de 2017

Sobras


Sobrou sal naquele mar

Sobrou pele no casaco e calor no corpo frágil

Sobraram palavras na ponta da língua para serem ditas

Sobrou vento na saia rodada

Sobraram sonhos silentes, sonhos afamados

Diluídos em sangue 

Já coagulado

Sobraram pernas e passos

Sobraram lábios, inclusive

Sobraram certezas, fatos, fotos

Sobraram dias e recomeços e luas e horizontes

Sobrou um nada insistente desse tudo carente

Um buraco, uma brecha

E na moral da história, faltaram náufragos

Faltaram riscos

Faltou dançar na chuva

Faltou fazer amor 

(Nua de estirpes)

Faltou ir

Faltou o violeta no espectro

E faltou correr que nem bicho solto

Invadir que nem bicho doido

Faltou aqui, acolá

Beijos, sorrisos

Abismos também faltaram

Faltou uma manhã interminável ouvindo Comfortably Numb

Ah!

Faltou absolutamente tudo nesse chavão

Consensual 

Vulgar

Morrer ou matar?

A vida não sobra

E eu, estou de saída.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Autocontrole

Sono
Ápice
Fogo
E medo de altura.

Êxtase
Sonho
Azia
Dispersão.

Frequência 
Timidez
Perversão 
Poesia.

Tudo misturado.
Desastre.
Sinfonia.


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Não sabe


Não.
Você não sabe.
Você não sabe de mim.
Não sabe.
Nada.
De mim.
Você não sabe meu nome
Sequer.

Você não sabe meu gosto
Meu gesto
Meu lapso
Meu grave
Meu desespero.

Não.
Não sabe.
Você não sabe minha cor
Minha fuga
Meu véu
Minha morte.
Você,
Não sabe a palma da minha mão.
Não sabe meu ócio.
Meu sócio.
Meu país.

De mim,
Você não sabe o toque
Nem o pertencimento.
Não sabe meu pecado.
Meu rastro.
Meu sangue.
Meu prazer.

Não.
Você não sabe.

Não sabe meu suor.
Não sabe minha discórdia.
Meu lado
Meu laço
Meu asco
Meu mel

Não.
Não.
Não.

Você não sabe nada
Do tudo que eu mostrei.
Desenhei.
Revelei.
Entreguei.
Naquele teste de praxe.

Você não sabe
Da minha psicopatia.
Das minhas maledicências.
Viagens.
Reticências...
Aparências
Ponto final.

Ora,
Você não poderia saber.

E não sabe você,
Inclusive,
O porquê
Os porquês
De ao teu lado
Eu ter acordado
Nesta manhã.



segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Moça


Entrou, retilínea, no recinto. Os passos, esparsos, quase falavam por si. Procedeu o intuito,  e "ai que dó" de quem não a notasse. De ofício, assumiu a pesada responsabilidade da antipatia e rasgou, a grosso modo, o clima sem raça do ambiente hostil. Coerente aos pontos cardeais, a cabeça erguida proporcionava uma visão mais justa. Foi questionada com olhares. Foi julgada por juízos de estimação. Focou no epicentro e de bom dia ofereceu um sorriso injustificável. Ninguém se mexeu. Ninguém atravessou o caminho. Estavam todos com muito receio de pisar no rabo do bicho. Obrigatoriamente, mesmo se ela estivesse ausente, seria percebida. Menina insensata essa. Entrou, ficou dez minutos e saiu, causando (com que direito?) tormentos mentais nas pobres criaturinhas. Sujou as mãos por ser quem era. E saiu, de batom vermelho, no estilo humor negro. 

Lia Clarisse, e portanto sabia que a liberdade ofende.

domingo, 14 de setembro de 2014

Elegância da dor


Não despreze sua dor. Não menospreze as lágrimas que irrigam suas expressões. Você precisará de cada uma delas para matar sua sede de proteção e imunidades. Vacinas são feitas com o próprio vírus e a mão só caleja depois de sangrar. Isso não é um consolo, você vai ter que aceitar. Respire fundo e aguente, caso contrário, aguente sem ar. Você pode até procurar ajuda, mas cuidado para não banalizar a si. Tenha sempre as pessoas certas. Respeite seu luto. Tudo é fase sim, e essa talvez seja a mais importante. Ame o silencio característico que vem para brindar e que estará constantemente contigo, até o dia em que houver readaptação. Se não existir sofrimento você jamais poderá trajar sabedoria nem, tampouco, mérito. So é feliz quem já sofreu. Só é inteiro quem já sofreu. Só é digno de suas convicções quem já sofreu. Confie no seu poder de superação porque esse é um condão precioso da vida e é, ao mesmo tempo, o único lastro de justiça capaz de aliviar. Seja alguém de verdade, ame a sua existência e absolutamente tudo o que isso inclui. Isso se torna uma tarefa fácil quando confiamos na vida como algo cíclico. Tudo faz sentido, sempre. A dor que entranha e sufoca é a mesma que remedia e constrói. Deixe que ela entre, fazendo o serviço, e nem por um instante aceite que sintam dó de você. Não sentimos pena de quem admiramos. Levante, disfarce e faça um curativo. Tente absorver a elegância da dor e tirar todos os proveitos. Não se acovarde. Quando anoitecer, já cicatrizou. É a dor aquela cláusula máxima para que se tenha o direito de experimentar todos os sentimentos do mundo. Pague o preço e garanta uma vida de valor.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Prazer, Eu.


Eu morei naquele abraço. E embora a terra relativamente infértil não sugerisse eternidade, eu morei lá. Quando fui convidada, a recusa não fazia parte dos meus planos. Recusa pra mim é algo contraditório demais pra quem carrega consigo a pretensão de que tudo é espera por novidades. De que o mundo é anseio e apostas. Eu morei naquele abraço, naquele espaço, decorei ele todinho, dancei em cada metro quadrado. E lembrando da minha aparência no passado, dias e meses atrás, meu cérebro só consegue formatar a beleza magnética e inevitável daquele moça corajosa. Entrei e nem pedi licença. A porta estava entreaberta (nenhuma porta nunca esta totalmente fechada pra mim) e eu abri, arreganhando num empurrão só. Agora, vejo a mesma porta e em pé diante dela (ainda do lado de dentro), encho o peito de ar para fechá-la com um sopro. A força da minha sutileza sempre suportou melhor os pesos. (Sim, um sopro!). A batida é previsível e se é previsível não promove maravilhamento. Eu vou soprar agora. E quando eu estiver do outro lado dessa linha divisória, eu certamente verei a tranca fincar, em câmera lenta, e darei um sorriso "de boca". Conhece? Eu darei aquele sorriso expressivo que você tentava desvendar. E vou me virar, dando as costas sem me boicotar por isso, carregada de experiências, sabores e invasões. Levarei você comigo numa realidade abstrata, num plano espiritual, numa sensação inconsciente... sei lá. Acho que talvez eu te leve nas mãos. Nas mãos porque você se acomoda melhor em lugares palpáveis, concretos, controláveis. Coração é prisão e a mente um lugar cruel que eu não daria a você, querido. Mas nas mãos é o lugar ideal porque ao longo dessa história eu nunca as lavei, talvez por lembrar sempre dos nossos ajustes e da nossa concepção de sabedoria em meio a essa embriaguez. Eu Mercúrio, e você Vênus. O seu abraço foi a última e melhor casa da cigana que eu quis experimentar ser. A casa ausente de base, cálculos, prestes a desabar em morte. E só de imaginar que podíamos morrer a qualquer milésimo, certifico aqui a experiência inebriante e válida. E sempre enquanto esperávamos os escombros, éramos perdoados com as pequenas mortes diárias. Com os golpes de faca diferidos dessa guerra de egos afiados e almas quentes. É fato o que fomos e é corpóreo o laboratório resultante do nosso duelo de gigantes. Não me entenda mal e nem me julgue consciente demais ou fatídica. Fatídica é diferente de fatal e foi disso que você me chamou - com os olhos - no último encontro. Fatal. Porque, a grosso modo, não tem nada mais convincente do que o desafio pessoal de lidar com o que nos mata. É esse o preço mais alto a pagar para provar a si, não é? E eu não estou falando de tragédias ou desgraças. Pois bem. Sem empates e sem antídotos. Moramos em nossos abraços e nos alimentamos das nossas consciências. Crescemos. Eu cresci. E não caibo mais nesse abraço pequeno. E eu, consigo alargar meus braços e abraçar o mundo. Mas você... Você não! Porque sou eu quem escolho o tamanho dos meus braços enquanto os seus já estão metaforicamente amputados. Sinto, mas metáforas limitadas não servem para a plenitude do meu poema. Prazer, Eu.

sábado, 2 de agosto de 2014

Au Revoir


- Seis horas de uma manhã de plumas.

Vejo ela partir. Porque ela tinha de ir, assim, sem avisar? Sem objeções, ela saiu de onde estava, rumo ao... sentido da vida? Ela sempre me disse que quem anda pra frente contempla o sentindo da vida. E para frente sempre foi o caminho mais difícil de ser explorado. Saiu sem pentear os cabelos, vestida de vento, com os pés descalços. Eu já não podia fazer mais nada e vê-la indo de costas era como ver um horizonte distorcido, cheio de lonjuras e despedidas. Escorrendo, ela ia, pelos meus dedos, feito areia fina roubada de uma ampulheta. Mas eu sabia. Sim, eu sabia que a contagem seria sempre regressiva. Sempre decrescente. Indecente, devastadora... 

- Três horas de uma tarde esquecida.

Ela tinha mesmo deixado seus devaneios pra trás, e todos os seus demônios. E agora eles me faziam algum tipo de companhia, se posso assim dizer. No corredor haviam espalhados alguns poemas dela, escritos em época de Bossa. Num deles, li:


De áurea luxuosa e livre
Sou mulher de versos
Que nunca couberam
Numa redondilha menor 


Agora, só restava o cheiro diluído e quase imperceptível. 

- Meia noite de uma noite sem luas.

Ainda despedindo, vejo-a disforme, já noutro mundo, como uma miragem. Como o oásis do deserto que ela deixou aqui. Eu poderia ir com ela, mas a moça era autêntica demais. E eu, fincado, observava pela última vez a silhueta, que a cada passo se transformava em nuvem, e que em pouco tempo choveria, matando poucos e bons afogados.